sábado, 20 de setembro de 2014

UNIDOS PELO CORAÇÃO-Richard Simonetti

Como é que as dores inconsoláveis dos que sobrevivem se refletem nos Espíritos que as causam?

O Espírito é sensível à lembrança e às saudades dos que lhe eram caros na Terra; mas, uma dor incessante e desarrazoada o toca penosamente, porque, nessa dor excessiva, ele vê falta de fé no futuro e de confiança em Deus e, por conseguinte, um obstáculo ao adiantamento dos que choram e talvez à sua reunião com estes.

Livro dos Espíritos, questão 936.

O homem se despe e entra no chuveiro.

Súbito a porta do banheiro é arrombada. Desco­nhecidos o agarram, vendam seus olhos e o amordaçam. Conduzido ao aeroporto, é embarcado num avião, em indesejável viagem para remota região, onde o deixam sem nenhuma explicação. Confuso e desorientado va­gueia sem rumo.

Semelhante situação se assemelha a de Espíritos que retornam à Vida Espiritual abruptamente, “rapta­dos” por um acidente, um ato de violência, uma síncope fulminante.

A extensão de suas perplexidades dependerá, evidentemente, de vários fatores, destacando-se os conhecimentos relacionados com o trânsito para o Além, a maturidade emocional e, sobretudo, a natureza de seu envolvimento com os interesses materiais. Neste parti­cular, aplica-se perfeitamente a advertência de Jesus: “Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu co­ração” (Mateus 6, 21).

Aqueles que fazem da existência humana um fim em si, que de nada cogitam além dos seus negócios, ape­gados aos bens da Terra, terão imensas dificuldades de adaptação, se “raptados” para o continente espiritual. Um rico empresário, empolgado por suas atividades co­merciais, sem espaço em seu coração para cogitações mais nobres, sentir-se-á dolorosamente lesado, como se lhe houvessem roubado até o último centavo.

Espíritos evoluídos, que fazem “poupança para o Além”, guardando seus tesouros nos bancos da sabedo­ria e da virtude, não têm dificuldade para enfrentar a grande transição, mesmo que ocorra inesperadamente.

Herculano Pires, notável escritor e jornalista espíri­ta, é um exemplo marcante. Tendo sofrido um enfarte, foi imediatamente conduzido ao hospital. Enquanto os médicos o socorriam, iniciava-se uma reunião de estu­dos espíritas e prática mediúnica, na garagem de sua re­sidência, que funcionava como pequeno centro espírita, frequentado por amigos e admiradores. A família resolve por bem não informar o grupo reunido, a fim de evitar tumulto no hospital.

No desdobramento dos trabalhos mediúnicos, para surpresa dos presentes, um Espírito informou o faleci­mento de Herculano. Em seguida ele próprio se manifesta­va para suas despedidas, em mensagem psicografada, em que dizia:

Família querida,

Vivendo contigo dias felizes e amenos, na

[experiência do lar prossegue a vida.

Coragem e otimismo, não quero pompas nem velas,

Apenas a simplicidade do professor do interior

[em metrópole de céus e estrelas...

Sustenta em apoio vibratório a casa,

Ampara o livro da codificação,

E eu, em espírito ou memória, ao lado dos

[amigos espirituais contigo sempre estarei,

No apostolado de pregar e servir a Doutrina dos

[Espíritos, com o Mestre de Lion.

Virgínia querida, mais esposa do que esposo fui,

Já não tem falar, nem riso, não mais o poeta.

Mas que semblante triste o teu! Volte ao que era,

Como o tempo na casa velha,

Tudo é vida, das noites de rima, doutrina e cozinha,

Lar, amigos,

Não é confusão, é nova sensação,

A de viver, sentir que já não sou corpo,

Mas alma, até que enfim!

Desculpe, sou espírito de verdade,

Amparado em novas luzes,

A minha, a nossa luzinha, que ajudaste a construir...

No momento adeus, menos choro e mais café!

Se há dificuldade de captar a escrita,

Imagine a de despertar aqui,

Para dizer aos meus da sobrevivência da alma!

Muita paz em Jesus.



Somente depois do encerramento da reunião che­gou à notícia do falecimento. Ficou-se sabendo que Herculano costumava escrever poesias dirigidas aos familia­res em ocasiões especiais. E assim procedeu novamente, em data muito significativa ─ a de sua própria desencarnação! Identificamo-lo perfeitamente nas ideias e ex­pressões usadas, particularmente ao solicitar aos familia­res que trabalhem em favor da obra de Allan Kardec, o “Mestre de Lion”, como ele o fez, por supremo ideal de sua existência.

A manifestação de Herculano Pires, momentos após o seu falecimento, é um atestado eloquente de imortalidade, uma demonstração de como o Espírito es­clarecido e consciente pode superar de imediato o trau­ma da morte repentina, mas é, inegavelmente, uma ex­ceção.

Por isso, o melhor mesmo é “morrer na cama”, em doença de longo curso, que nos prepara compulsivamente, induzindo-nos à oração, à superação das ilusões, à procura da religião, ao desapego das humanas paixões, à disposição de cultivar valores espirituais. A transferên­cia, então, efetua-se de forma mais branda. Não nos sen­timos “raptados”. Podemos até ensaiar despedidas, se formos capazes de “encarar” a morte.

Em mortes “à vista” ou “a prazo”, muita gente parte despreparada; muita gente fica inconformada, originan­do dois problemas:

No primeiro, o “morto” perturba os “vivos”.

Se o desencarnante encontra dificuldades para defi­nir seu novo estado; se o afligem impressões relaciona­das com o tipo de morte que sofreu; se ele está confuso e atribulado, há uma tendência natural para procurar aqueles aos quais está ligado pelos laços do coração, que constituem parte de seu “tesouro”.

Aproxima-se deles para pedir socorro, para recla­mar atenção, para expor suas angústias e perplexida­des.

Estabelecida a sintonia entre o desencarnado e seus afetos, surge o que poderíamos definir como uma obsessão pacífica, já que não há nenhuma intenção maldosa do “obsessor”. Ele apenas quer ajuda, como alguém que, prestes a morrer afogado, agarra-se desesperadamente ao companheiro que está mais próximo.

Semelhante envolvimento impõe penosas impres­sões àqueles que o sofrem, mas não há grandes dificulda­des para ser superado. A simples frequência ao Centro Espírita vale por uma desobsessão, porquanto o desen­carnado tende a acompanhá-los, colhendo os benefícios do ambiente e das palestras, que o esclarecem e prepa­ram para a ajuda mais efetiva dos mentores espirituais.

E há o problema dos “vivos” que perturbam os “mortos”.

Particularmente nas mortes repentinas, se os fami­liares não têm nenhuma noção a respeito do assunto, tendem a cultivar ideias negativas, em insistente questio­namento íntimo. E revivem interminavelmente as cir­cunstâncias do desencarne, envolvendo um carro des­troçado, um incêndio devorador, um afogamento trági­co, um tiro fatal...

Quando o desencarnante tem certa maturidade es­piritual, superando o trauma do trágico retorno à Vida Espiritual, consegue neutralizar as vibrações de angústia e desespero dos familiares, embora lhe sejam penosas.

Se, entretanto, como ocorre com frequência, o re­torno inesperado lhe impõe perplexidades e dúvidas, o desajuste dos familiares recrudesce suas reminiscências dolorosas relacionadas com as circunstâncias de sua morte, como quem vive um pesadelo que se repete inde­finidamente.

Ao se manifestarem em reuniões mediúnicas, estes atribulados companheiros imploram aos entes queridos uma trégua em suas amargas cogitações íntimas. Não de­sejam ser esquecidos, mas que deixe de jorrar a fonte de inconsoláveis e torturantes lembranças. Que não os ima­ginem queimados, destroçados, afogados, desintegra­dos, mas vivos, num outro corpo, numa outra dimen­são.

Insistindo para que mudem suas disposições e re­tornem à normalidade, sugerem aos familiares que se disponham a trabalhar em favor dos semelhantes, inte­grando-se nos serviços da fraternidade humana.

O falecimento de um afeto caro ao nosso coração se assemelha a uma amputação psicológica. É como se arrancassem parte de nós mesmos, ficando um imenso vazio onde, se não tivermos cuidado, proliferam facil­mente os miasmas do desajuste e da perturbação.

O esforço do Bem ajuda-nos a preencher adequada­mente esse vazio, operando prodígios de refazimento em favor de nossa saúde e bem-estar, harmonizando-nos com a existência.

Obras notáveis de caridade e promoção humana têm nascido em situações dessa natureza, quando pes­soas atormentadas pelo falecimento de alguém muito querido, dedicam suas vidas à sementeira do Bem, co­lhendo consolo e alento no empenho de servir.

A saudade sempre fica, mas sem amarguras, sem do­res inconsoláveis, uma saudade suave, como a notícia fe­liz de um afeto que não se extingue jamais, assegurando-lhes, no recôndito da alma, que seus amados estão presentes no seu dia-a-dia, no trabalho edificante que executam, nas lágrimas que enxugam, nas bênçãos que dis­tribuem. Embora habitando mundos paralelos, permanecem unidos pelo coração. 

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