terça-feira, 26 de maio de 2015

O ANEL DE GIGES


Sidney Fernandes - 1948@uol.com.br

Vigiai e orai, para que não entreis em tentação. 

Mateus, 26:41

Um jovem entra numa loja de roupas maravilhosas e encanta-se com uma peça. Não pode comprá-la, pois não tem dinheiro. Todos os seus amigos têm roupas daquela marca, menos ele. O intenso desejo que tem de possuir aquele bem lhe traz ideias não muito dignas.

— Será que se eu, com muito cuidado... Não, não posso! O segurança está olhando. E esta loja tem um sistema moderno de vigilância eletrônica. E se eu for pego, complicarei minha vida.

A cena que acabamos de imaginar não representa, certamente, um modelo de virtudes. Não se trata de honestidade e sim de precaução. Ali não existe moral, somente prudência.

Quer o caro leitor uma prova disso?

Imaginemos que aquele jovem tivesse o célebre Anel de Giges, concebido por Platão na lenda que integra a sua obra A República, e que o tornaria invisível, sempre que desejasse.

Ainda assim ele conseguiria conter o seu ímpeto de furtar a roupa?

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O personagem da lenda de Platão é um pastor chamado Giges, que encontra, por acaso, uma caverna onde jaz um cadáver que usava um anel. Quando Giges enfia o anel no próprio dedo, descobre que esse o torna invisível. 

A partir daí, não havendo mais vigilância ou testemunhas, Giges, que era tido como um homem honesto, passa a praticar más ações. Seduz a rainha, mata o rei e toma posse do reino.

Essa história levanta uma indagação moral: algum homem seria capaz de resistir à tentação se soubesse que seus atos não seriam reprimidos? Será que o bom e o mau só se distinguem pela prudência ou pela habilidade maior ou menor para se esconder? Se ambos tivessem o anel de Giges, tenderiam para o mesmo fim? 

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Examinemos, inicialmente, algumas orientações oriundas de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, sobre a moral. 

Alguns Espíritos já trazem de vidas passadas a astúcia, a deslealdade, a traição, o pendor para o roubo e até para o assassínio. Outros são colocados em ambientes propícios, onde possam lutar contra esses maus instintos.

Além do ambiente, certos tipos de provação, a riqueza por exemplo, oferecem arrastamentos muito semelhantes ao da invisibilidade do Anel de Giges.

Todos se deixam seduzir pelo dinheiro? Depende do seu caráter, advertem os Espíritos superiores. Uns se tornam avaros, outros pródigos, alguns pendem para o egoísmo e outros, ainda, se distinguem por sua generosidade. Há alguns que se mantêm na disciplina, mas vários têm propensão para a sensualidade.

O poder, o dinheiro, a fama ou a posição social não conferem ao homem uma espécie de invisibilidade? Não o poupa de muitas inconveniências? Não obstante, diante das mesmas circunstâncias, muitas criaturas se comportam, mantêm sua dignidade e vencem essas provações.

Como venceram? Tiveram bom ambiente e boa educação em sua infância ou simplesmente são Espíritos que desde cedo tomaram um caminho que agora os exime de muitas provas? 

Há, infelizmente, uma grande maioria que, com ou sem o Anel de Giges, se deixa arrastar para o mau caminho.

Talvez o caro leitor esteja querendo indagar, tal como fez Kardec: 

— Não será, entretanto, legítimo o desejo de possuir?

— Há homens insaciáveis que acumulam bens apenas para saciar suas paixões. Aquele que, ao contrário, junta pelo seu trabalho, tendo em vista socorrer os seus semelhantes, pratica a lei de amor e caridade e Deus abençoa o seu trabalho - respondem os Espíritos.

Lembro-me de um personagem de Dostoievski que dizia:

— Se Deus não existe, tudo é permitido!

Se fosse dessa forma, estaríamos diante do fim da ética. Acreditando ou não em um poder maior, o homem não pode se permitir a tudo. O que guarda a moral simplesmente por temer as consequências ou para merecer alguma recompensa não é virtuoso, e sim egoísta prudente.

A ética baseia-se em três pilares: quero, posso e devo. Quando eu tenho paz de espírito? Tenho paz de espírito quando aquilo que quero é o que eu posso e o que eu devo. Isto é, meus anseios mais íntimos devem se conciliar com as regras sociais e com as leis divinas.

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Quando desencarnamos não ficamos invisíveis? Não podemos, como faria Giges, ir para onde bem entendermos, sem sermos detectados ou identificados? Como agem os Espíritos quando se desligam de seus corpos? 

A vida verdadeira é a espiritual. Com a morte, o Espírito retorna ao mundo a que realmente pertence e do qual se afastou momentaneamente. Mantém a sua individualidade, bem como a aparência de sua última encarnação, em seu perispírito.

— Que sensação o Espírito tem quando se reconhece de volta ao mundo dos Espíritos?

— Depende - respondem os Espíritos a Allan Kardec, na questão 159, de O Livro dos Espíritos.

— Se praticou o mal, sentir-se-á envergonhado de tê-lo praticado. Se foi justo, sentir-se-á aliviado de grande peso, sem temor de encarar o olhar de quem quer que seja.

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Encarnados ou não, nossas atitudes refletem o nosso estágio evolutivo. O que nos impele à prática do bem? 

Inicialmente o interesse. Começo a praticar o bem impulsionado pelo desejo de aliviar minhas dores, curar minhas doenças ou vencer minhas inquietações. O pensar em mim mesmo constrói em mim uma atitude pragmática de troca. Uso o bem como mercadoria de barganha.

Com o passar do tempo, conscientizo-me de que fazer o bem é minha obrigação, como ser social, como filho de Deus e como corresponsável pela evolução do plano em que me encontro. Esses são passos que me levam ao amor desinteressado pelo semelhante, ingrediente essencial da vocação de servir.

Da mesma forma, perante a ética passo por alguns estágios. No primeiro momento, cumpro regras sociais e morais, por medo. Isto é, temo as consequências dos que me fiscalizam e vigiam.

O passo seguinte é o do dever de cumprir regras, por educação e consciência. É uma questão de obrigação comigo mesmo.

O estágio final é o vivido por criaturas que já venceram o mal e somente pensam e agem no bem. Esses já vivem a atmosfera dos mundos superiores, onde o bem já se tornou um hábito. Para essas pessoas, o bem constitui a regra, e uma só intenção maligna seria monstruosa exceção.

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Entrevistando milhares de Espíritos que na Terra ocuparam diversas classes sociais e acompanhando suas vidas espíritas, Allan Kardec concluiu que os seus sofrimentos guardavam direta correlação com os seus procedimentos, quando encarnados. Experimentavam agora as consequências de seus atos. Em outras palavras, a outra vida é plena de venturas para os que seguiram o bom caminho.

A conclusão a que o codificador chega é emblemática: os que sofrem é porque querem, e só de si mesmos devem se queixar, na Terra ou além da Terra.

Há pessoas que fazem o bem espontaneamente, sem qualquer esforço. Esses, com o Anel de Giges - da lenda de Platão - ou com a invisibilidade que a ausência de corpo físico lhes confere, não precisam mais lutar contra as tentações. Venceram-nas, porque o progresso neles já se realizou. 



Os bons sentimentos nenhum esforço lhes custa e suas boas ações lhes parecem simplíssimas. 

O Livro dos Espíritos, questão 894

Finalizamos, amigo leitor, lembrando que a invisibilidade de Giges, dos poderosos encarnados ou dos desencarnados, pode propiciar momentâneo, porém fugaz, poder, mas nunca a impunidade. Permanece a nossa responsabilidade de Espíritos em evolução.

Os homens semeiam na Terra o que colherão na vida espiritual: os frutos da sua coragem ou da sua fraqueza.

Allan Kardec